Essa semana, ouvi mais uma vez a pergunta: "Mas por que literatura lésbica? Não seria melhor que não houvesse rótulo? Só literatura, só bar, só balada... Sem precisar classificar?"
A pessoa que perguntou isso fez com o maior respeito e boa vontade possíveis. E, mais uma vez, eu respondi o que sempre respondo: seria ideal.
Seria ideal que qualquer pessoa pudesse existir sem a necessidade de classificar e que, nessa existência, não corresse riscos simplesmente por ser quem é. Mas o mundo não é ideal: o mundo é LGBTfóbico, machista, racista, elitista, etc. etc.
Seria lindo se eu pudesse ir em "qualquer bar" sem correr o risco de receber olhares condenadores - na melhor das hipóteses - ou até mesmo uma agressão. Mas, infelizmente, quando não há a classificação, não há espaço. Eu, por exemplo, já recebi pedidos para me retirar de um local simplesmente porque sou lésbica - não estava fazendo nada de mais, mas estava ali.
E é aí que, voltando para a classificação da literatura, mais uma vez, eu gosto de falar sobre a importância da representatividade:
Representavididade importa sim. Só que, muitas vezes, só quem viveu sem essa representatividade sabe reconhecer a importância dela e a falta que ela faz.
Quanto à literatura, eu vou repetir aqui o que a Diedra Roiz e eu escrevemos na apresentação do livro [in]contadas*:
Quando falamos sobre literatura com temática lésbica, não estamos falando da criação de um rótulo. Estamos falando da criação de uma representatividade. Não que exista uma identidade única para representar a mulher lésbica. É exatamente o oposto que queremos mostrar: a pluralidade de ser mulher e ser lésbica.
Mas o lugar de onde se fala importa. E não é possível negar que existe, sim, uma possibilidade maior de identificação quando aquela que escreve – e aquela sobre quem se fala – se aproxima daquela que lê. Um texto escrito por uma lésbica tem o ponto de vista de uma mulher que vive sua afetividade e sexualidade centrada em outras mulheres. E a leitora mulher e lésbica pode se identificar com a personagem, a que foi escrita por uma mulher, para uma mulher. A mulher que fala; a mulher que ama; a mulher que deseja; a mulher que sofre. A mulher que vive e luta, diariamente, a luta de ser mulher. E lésbica.
Em uma sociedade que ainda encontra dificuldade para aceitar a diversidade, que ainda insiste em ditar padrões, este livro tem a pretensão de dar voz e tornar visível uma realidade que ainda é minoritária – mesmo dentro do universo LGBT. Afastada do viés machista heteronormativo, a mulher lésbica precisa ser vista como sujeito que existe independente do homem – e não mais, nunca mais, somente como um objeto de desejo.
A literatura com temática lésbica pode ser considerada uma literatura marginal – no sentido puro da palavra: aquela que está à margem. E a nossa intenção é de que ela esteja, cada vez mais, ao centro. Assim como sonhamos com o dia em que a mulher lésbica possa existir como protagonista-narradora-sujeito desejante, portadora da voz, do ponto de vista e do discurso.
Seria ideal que não houvesse a necessidade de classificar. Seria ideal um mundo em que pudéssemos ocupar todos os espaços sem a necessidade de rótulos. No entanto, esse mundo ainda é só um ideal e, se não rotulássemos agora, não haveria espaço – para a existência e, muito menos, para a literatura.
* Apresentação retirada do livro [in]contadas - aquelas que não podem falar dizendo o que não deve ser dito, uma coletânea de literatura lésbica organizada por Diedra Roiz e Manuela Neves, com distribuição gratuita e recursos advindo do PROAC SP.
Recentemente, nos eventos de lançamento do livro "Espelhos e Miragens", em Teresina, participei de uma Roda de Conversa sobre Literatura LGBT em que discutia justamente a "necessidade" de uma literatura identitária (não que a literatura precise levantar bandeiras e fazer ativismo), mas, justamente, por permitir o posicionamento político em busca da diminuição das desigualdades, preconceitos e discriminações. A literatura identitária não apenas abre espaço para que as vozes silenciadas ou invisibilizadas sejam acessadas; mas, possibilita, sobretudo no processo de alteridade, que se desenvolva a empatia no(a) leitor(a). Assim, como, durante séculos, foram os homens que escreveram as histórias sobre mulheres; também foram os heterossexuais que escreveram as histórias sobre os LGBTs. Quando o próprio LGBT que conta a história, há uma imensa diferença: é a perspectiva de um outro diferente. É preciso abrir espaço para a diversidade e para as lutas que acompanham cada identidade autoreconhecida.
Hanna K,
Peço permissão para citá-la em uma proposta para debate em um projeto cultural literário aqui na cidade Londrina/PR. Vou propor a literatura lésbica como fator ético na educação sob o ponto de vista da representatividade e questões identitárias.
kc´s
Hanna K., arrasou 👏👏👏
Concordo com TUDO! Classificar nunca é a melhor opção, porque, de certa forma, limita. Um bar/balada/livro/e qualquer coisa LGBT vai deixar de cumprir com o seu propósito integrativo, que suponho, seja o objetivo das coisas que precisam de gente para existir. Acontece que, como já foi dito, se não classificamos, como vamos achar lugares onde possamos ser sem TEMER? Onde acharemos livros que falem de nós para nós? Uma pessoa heterossexual pode ter muita dificuldade em entender isso, porque a sociedade pressupõe a heterossexualidade, mas a representatividade importa, sim! Ademais, somos seres políticos e a política está em tudo. Portanto, o posicionamento político também está para a literatura LGBT/identitária. Entendo que é por aí que nos fortalecemos...
Após baixar o ebook gratuito disponível no site, recebi um convite da Manu, via e-mail, para opinar sobre o conteúdo que havia recebido.
Tenho uma palavra que talvez defina tudo: incrível.
A sensação ao ler cada trecho sabendo que há um projeto desses comandado por mulheres, mulheres lésbicas. Toda essa representatividade.
Sabe, eu cresci lendo romances héteros, no máximo li algumas fanfics LGBTS, o que não é algo considerado profissional.
O mais interessante é que os trechos são envolventes, vão desde os clichês de um relacionamento aos desejos sexuais de uma mulher por outra. Sem fetiches masculinos, sem forçar a barra, sem fantasiar a situação como se fosse algo distante da realidade.
Até hoje os livros que li sobre LGBTS, foram meio forçados. Alguns termos usados completamente errados. E a visão que eu tenho é que héteros escreveram tudo aquilo imaginando como é um relacionamento LGBT. Acredito que a pior parte seja o fato de não haver realmente uma representatividade, e as lésbicas serem tratadas apenas como fetiche. O que me fez, é claro, perder completamente o interesse em continuar esse tipo de leitura.
Talvez eu realmente não tenha pesquisado direito, e não encontrei um livro relevante. Mas muitas vezes a "representatividade" que temos, é mostrando como se fossemos um erro, ou relatando a parte de desejos sexuais como uma simples "putaria".
Atualmente já temos acesso a diversos canais no YouTube, e a alguns filmes que realmente podem nos representar e falar por nós. Mas livros, não.
Queria eu nos meus 15 anos a oportunidade de crescer lendo um romance, ou qualquer outro livro com temática lésbica e saber que é tudo normal. Que os comportamentos, vivências e relacionametos interpessoais podem ser exatamente como de um casal hetero (só que melhor rs). Assim eu não ia crescer frustrada, sem muitas informações, achando que o que eu era/sou é errado, e demorar anos pra desconstruir padrões heteronormativos e machistas.
Ótima iniciativa de vocês! Espero que continuem com o projeto e tenham apoio para o mesmo, pois precisamos dele.
Gratidão!
Thayana e Pâmela, muito obrigada pelos comentários! É assim, dialogando e nos conhecendo, que vamos crescendo nessa luta! Juntas, ainda vamos mudar o mundo <3
Certa vez, em um evento literário, me perguntaram o motivo de sempre colocar um personagem LGBT em meus romances. Devolvi com apenas uma pergunta: “e por que não colocar?”. O mundo deve ser retratado sob todos os seus aspectos e, se na vida real ainda não encontramos o “mundo ideal”, em que cada um de nós se sinta representado, por que não levar isso, pelo menos, para os livros? Só nós sabemos a importância da representatividade, não apenas no mundo, na política, mas, principalmente, para nós mesmos. Além do mais, acredito que a cultura, não apenas a literatura, mas em suas diferentes formas de expressão, são um dos melhores caminhos rumo ao combate contra o preconceito.